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TJGO - Tribunal de Justiça do Estado de Goiás

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UMA HOMENAGEM A RIO VERDE

quinta-feira, 22 de março de 2012

image "Vocês podem se surpreender, mas eu afirmo que o Brasil se tornou um modelo judiciário para os outros países, pela eficiência e pela transparência”, enfatizou o professor-doutor holandês Albert Jan Van Den Berg ao apresentar a conferência “Arbitragem no Âmbito Internacional – Convenção de Nova Iorque”, na sala de conferências do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O evento, promovido pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), foi realizado na manhã de hoje, terça-feira (20).
Van Den Berg é um dos mais renomados especialistas sobre a Convenção de Nova Iorque em todo o mundo e foi recebido, antes de proferir sua aula, pelo presidente do STJ, ministro Ari Pargendler. “É uma honra tê-lo conosco. A arbitragem é essencial para o Judiciário brasileiro”, saudou o ministro, que ficou surpreso com o conhecimento do professor sobre as decisões do Tribunal da Cidadania. “Estou impressionado com o número de decisões do STJ envolvendo a Convenção de Nova Iorque. Pela quantidade e também pela qualidade dessas decisões”, salientou o professor. 
A Convenção de Nova Iorque, assinada naquela cidade em junho de 1958, reconhece e executa sentenças arbitrais estrangeiras. É considerado o instrumento multilateral de maior sucesso no campo do direito comercial internacional. Para os especialistas, a convenção é a peça central no cenário de tratados e leis de arbitragem, garantindo sua validação em vários países e favorecendo os negócios e comércios internacionais, pois fornece segurança adicional às partes que celebram transações mundiais.
Atualmente, a Convenção de Nova Iorque vigora em mais de 145 nações. O Brasil assinou o documento há dez anos e, de lá para cá, de acordo com Van Den Berg, tornou-se o “melhor aluno da classe”. Tudo porque, pela Constituição brasileira, as sentenças estrangeiras são de competência do STJ, que centraliza as decisões arbitrais que em outros países precisam subir os degraus da jurisdição para chegar ao resultado final. “A centralização e uniformização das questões sobre sentenças estrangeiras pelo STJ facilitam o entendimento das decisões, pois o juízo é muito especializado. Por isso os investidores estrangeiros já confiam nas decisões tomadas aqui”, enfatizou Van Den Berg.


Julgados no site

Van Den Berg também salientou: “A produção do STJ é muito boa, mas seria ainda mais relevante se os juízes passassem a citar a Convenção de Nova Iorque nas decisões que envolvem o tema. Assim criaríamos um índex mais abrangente do que é feito aqui em termos de arbitragem.” Hoje, o site da Convenção de Nova Iorque relaciona 40 julgados do Brasil que abordam o documento, para consulta dos juízes ao redor do mundo.
A aula do professor Van Den Berg foi aberta pelo diretor-geral da Enfam, ministro Cesar Asfor Rocha, e contou com a presença dos ministros Sidnei Beneti, Nancy Andrighi, Napoleão Nunes Maia Filho, Castro Meira, Massami Uyeda, Humberto Martins e Paulo de Tarso Sanseverino, todos do STJ, assim como o desembargador convocado Adilson Macabu; da representante da embaixada dos Países Baixos, Sarah Cohen; da presidenta do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), Adriana Braghetta; da coordenadora do CBAr, Ana Carolina Beneti, e do presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Gabriel Wedy.
A palestra de Van Den Berg traçou um estudo comparado da Convenção de Nova Iorque com a Lei Brasileira de Arbitragem, mostrando as semelhanças entre elas em diversos artigos. Na oportunidade, Van Den Berg, juntamente com o CBAr, lançaram o Guia do International Council for Commercial Arbitration (ICCA) sobre a Interpretação da Convenção de Nova Iorque de 1958 traduzido para o português.
“Foi a primeira língua escolhida para ser traduzido e vai auxiliar juízes do mundo todo, pois oferece um sumário da convenção, orientando os magistrados ao determinar a aplicação do documento de acordo com seu escopo e interpretação. É esperado que o guia tenha um papel de colaboração para que os juízes ao redor do mundo participem do processo contínuo de harmonização das leis de arbitragem internacional e usem a convenção de maneira consistente com a sua redação e espírito”, explicou Van Den Berg.

Fonte: STJ - Coordenadoria de Editoria e Imprensa

quinta-feira, 15 de março de 2012

Quem tem o direito de executar os montantes cobrados a título de astreintes, a multa imposta para forçar o cumprimento de uma obrigação determinada judicialmente: o estado ou o credor? A questão começou a ser tratada pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em dois processos. O relator de ambos, ministro Luis Felipe Salomão, propôs mudança na jurisprudência sobre o tema. Ele defende a divisão da multa entre o ente estatal e o credor. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Marco Buzzi.
Nos dois casos, instituições financeiras mantiveram o nome de particulares em cadastro de devedores, mesmo após o débito ter sido quitado. No primeiro processo, o Banco do Brasil se insurgiu contra o valor da multa cominatória, alegando que este se tornou “exagerado e não condizente com a finalidade das astreintes”. Pediu a redução a valores razoáveis.
Já no segundo processo, a ação de execução das astreintes, movida pelo particular prejudicado contra a Caixa Econômica Federal (CEF), foi extinta pelo juízo da 5ª Vara Federal de Curitiba (PR). Entendeu-se que o prejudicado não seria parte legítima para propor a execução, mas sim o ente estatal – no caso, a União.
O ministro Luis Felipe Salomão apontou que o objetivo desse instituto legal, previsto no artigo 461 do Código de Processo Civil (CPC), é coagir a parte ao cumprimento da obrigação. “Nesse passo, a multa não se revela como um bem jurídico em si mesmo perseguido pelo autor, ao lado da tutela específica a que faz jus. Revela-se sim como valioso instrumento para consecução do bem jurídico”, apontou.
Entretanto, observou o ministro, a legislação brasileira tem lacunas sobre o tema. Há dúvidas na doutrina quanto ao início da incidência das astreintes; sobre quando a multa pode ser executada; se pode ser executada provisoriamente, entre outras. Ele declarou que a jurisprudência do STJ tem dado resposta há várias dessas obscuridades. “Porém, outras questões continuam em aberto, sem uma abordagem profunda, como é exatamente o caso da titularidade do crédito”, apontou.
Função da astreinte
Haveria, na visão do ministro Salomão, dois valores a serem ponderados na imposição dessa multa. O primeiro é a efetividade da tutela jurisdicional e o segundo é a vedação ao enriquecimento sem causa do beneficiário. Para ele, a indefinição legal esvazia o instrumento, pois muitas vezes os valores do devedor recalcitrante são suavizados e diminuídos para patamares muito inferiores.
Por outro lado, o relator destaca que às vezes o credor também fica inerte e, propositalmente, demora a regularizar a situação para ver o valor da astreinte crescer. Para Salomão, isso “fomenta de modo evidente o nascimento de uma nova disfunção processual, sobretudo no direito privado; ombreando a chamada ‘indústria do dano moral’, vislumbra-se com clareza uma nova ‘indústria das astreintes’”.
Direito comparado

Salomão afirmou que, de acordo com vários doutrinadores, a atual destinação da astreinte exclusivamente para o credor, adotada pela jurisprudência brasileira, é incapaz de superar as contradições entre os valores da efetividade e da vedação ao enriquecimento ilícito. Ele destacou, na doutrina, entendimento de que essa concessão para o credor adotada no Brasil é mero “hábito inveterado, aceito confortável e passivamente pela doutrina e jurisprudência”.
Na avaliação do relator, conceder o valor integral para o credor, como no direito francês, geraria problemas como o enriquecimento sem causa. Além disso, a astreinte ocorreria independentemente da vontade das partes, independentemente de má-fé.
Por outro lado, ponderou o ministro Salomão, destinar todo o montante para entes estatais, na forma prevista no direito alemão, geraria outras distorções. Um exemplo seria quando o próprio estado reluta em cumprir obrigações judiciais, tornando-o credor e devedor ao mesmo tempo. Outra questão é que o estado muitas vezes demora a receber seus créditos, o que diminui o efeito de coação desejado na astreinte.
O sistema português, que destina metade do dinheiro ao credor e a outra metade ao ente estatal, seria o que mais se aproxima do ordenamento jurídico brasileiro. Para o ministro Salomão, o artigo 461 do CPC deixa claro que a astreinte cobre tanto interesses públicos como privados. Para ele, essa multa faz as vezes de sanção e ao mesmo tempo tenta garantir que o credor receba o mais rápido possível.
O ministro afirmou que a indagação sobre se as astreintes possuem natureza coercitiva ou punitiva não conduz necessariamente a uma conclusão lógica acerca de sua titularidade. Segundo ele, é preciso observar a natureza do crédito devido a título de multa, bem como os valores e interesses protegidos por essa cobrança.
Com essa fundamentação, o ministro votou pela redução do valor das multas em ambos os casos e pela destinação de metade do montante de cada uma aos respectivos entes estatais e credores. No recurso do Banco do Brasil, o relator reduziu a multa para R$ 100 mil, destinando 50% ao estado do Rio Grande do Sul, unidade federativa à qual pertence o órgão que prolatou a decisão não cumprida. No recurso da CEF, metade da astreinte de R$ 5 mil deverá ir para a União, já que a ordem judicial não cumprida partiu de juízo federal.
Até agora, o relator foi o único a dar seu voto, já que o ministro Marco Buzzi pediu vista antecipada. Não há data prevista para a retomada do julgamento.

Fonte: STJ

domingo, 11 de março de 2012

Na mesma linha do que já escrevi aqui neste espaço, o Ministro Gilmar Mendes mostra em artigo publicado na folha de São Paulo o erro que seria transferir o julgamento daqueles que hoje “gozam” da prerrogativa de foro para a primeira instância.

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Por Gilmar Mendes

A maldição – ou o mal-entendido – começa pelo nome.

Poderia ter sido “foro de reserva”, “foro único” ou “de instância única”. Mas “foro privilegiado”, além da ambiguidade, induz a equívoco quando invoca “preferência”, “apadrinhamento” ou a uma “proteção” que, de fato, não existe.

Qualquer senador julgado pelo Supremo, por exemplo, não terá direito a outro julgamento, como têm os demais cidadãos, que chegam a obter três ou até quatro revisões da primeira decisão.

A falácia de que a extinção desse instituto diminuiria a impunidade dos “figurões” não resiste ao óbvio confronto com a duração média dos processos no país, incluindo toda a longa caminhada recursal de praxe.

Ou seria razoável admitir que, transferindo-se a competência originária desses julgamentos para a primeira instância, de melhor qualidade seria a atuação da Polícia Federal? Quem sabe mais ágeis seriam os promotores – decerto mais resistentes a pressões que a Procuradoria-Geral da República! – e mais célere se tornaria a produção de provas?

Ora, quem argumenta com o uso de chicanas para protelar, nos tribunais, atos essenciais não pode imaginar que na primeira instância deixariam de acontecer embustes.

Contudo, perigo maior do que a procrastinação seria a rede de intrigas da pequena política enveredar comarcas, adensar o jogo eleitoral e conspurcar de vez nossa jovem democracia.

Em suma, o debate sobre a extinção desse foro é maniqueísta e hipócrita porque nega o óbvio: o problema é conjuntural. Todo o Judiciário precisa acelerar o processo de automodernização para acompanhar o ritmo de amadurecimento político brasileiro.

Até pela maior transparência exigida nesse patamar civilizatório, é compreensível o agastamento de setores da sociedade diante do ritmo acautelado da Justiça. Mais produtivo, porém, seria examinar com menos preconceito o quanto tem sido feito nos últimos anos para combater a impunidade, sobretudo a que decorre da lentidão processual.

No STF, por exemplo, em 2008 foi criado o Núcleo de Processamento Criminal, para identificar gargalos e encontrar soluções de modo a simplificar atos como a intimação ou a produção de provas. Com competência para expedir mandados, cumprir diligências e controlar prazos, a hoje coordenadoria atua para acelerar trâmites de modo a impedir a extinção da punibilidade pela prescrição.

Outra boa iniciativa no STF foi delegar poderes a juízes instrutores que, ao instruir inquéritos e ações penais, tornam factíveis a apreciação de casos complexos como o denominado “mensalão”.

Também se alterou o regimento da casa para agilizar inquéritos. O Departamento de Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República foram chamados para atuar em favor da celeridade processual. Não por acaso, tal conjunto de providências resultou na redução a seis meses da tramitação das extradições, que durava anos.

A própria introdução do processo eletrônico é ganho significativo que precisa ser valorado. E o Conselho Nacional de Justiça vem pondo os pingos nos is, ajustando estruturas, corrigindo desvios. Se a Justiça precisa melhorar, também é certo que vem se aperfeiçoando a olhos vistos.

Mas tudo leva tempo, e pouca parece ser a paciência da sociedade para esperar a maturação desses frutos, o que é temerário.

Basta pensar na federalização dos crimes contra direitos humanos – endossada pela Emenda Constitucional 45/2004 para assegurar a proteção desses direitos e tida pela comunidade jurídica como prova da robustez do Estado de Direito brasileiro – para ter certeza de quão equivocadas podem ser a desconfiança populista e a pressa desinformada.

GILMAR MENDES, 56, doutor em direito pela Universidade de Münster (Alemanha), é ministro do STF (Supremo Tribunal Federal).

Publicado originalmente na Folha de São Paulo, edição 11/03/2012.

sábado, 10 de março de 2012

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Nos últimos dias, alguns temas relacionados a uma possível confusão entre questões de Estado e Religião que estão em discussão nos Poderes Legislativo e Judiciário  estão fomentando um saudável debate na sociedade. Primeiro foi o projeto de lei de um deputado evangélico goiano referente “a cura de homossexuais”. Agora, é a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que determinou a retirada dos crucifixos e demais símbolos religiosos dos espaços daquele poder destinados ao público.

Somente por esses dois temas podemos ter uma dimensão do quanto a vida e os interesses da sociedade são complexos e, portanto, difíceis de serem atendidos pelos poderes da República, que devem, a um só tempo, defender e preservar direitos de todos os cidadãos, sejam eles integrantes de uma maioria ou das minorias.

Para entender os fundamentos da decisão do TJRS, segue abaixo a íntegra do voto proferido. Vale a leitura!

 

ÓRGÃO: Conselho da Magistratura

PROCESSO: 0139-11/000348-0

COMARCA: Porto Alegre.

RELATOR: Des. CLÁUDIO BALDINO MACIEL

INTERESSADOS

Rede Feminista de Saúde, SOMOS - Comunicação, saúde e Sexualidade, NUANCES - GRUPO PELA LIVRE ORIENTAÇÃO SEXUAL, LIGA BRASILEIRA DE LÉSBICAS, MARCHA MUNDIAL DE MULHERES, THEMIS - ASSESSORIA JURÍDICA E ESTUDOS DE GÊNERO

E M E N T A

EXPEDIENTE ADMINISTRATIVO. PLEITO DE RETIRADA DOS CRUCIFIXOS E DEMAIS SÍMBOLOS RELIGIOSOS EXPOSTOS NOS ESPAÇOS DO PODER JUDICIÁRIO DESTINADOS AO PÚBLICO. ACOLHIMENTO. A presença de crucifixos e demais símbolos religiosos nos espaços do Poder Judiciário destinados ao público não se coaduna com o princípio constitucional da impessoalidade na Administração Pública e com a laicidade do Estado brasileiro, de modo que é impositivo o acolhimento do pleito deduzido por diversas entidades da sociedade civil no sentido de que seja determinada a retirada de tais elementos de cunho religioso das áreas em questão.PEDIDO ACOLHIDO.

R E L A T Ó R I O

Des. CLÁUDIO BALDINO MACIEL (RELATOR)

Diversas entidades da sociedade civil, todas qualificadas na peça inicial deste expediente administrativo, postulam a retirada dos crucifixos e de outros símbolos religiosos atualmente expostos nos espaços públicos do Poder Judiciário, fundamentando tal pedido no artigo 19 da Constituição Federal e no fato de ser o Brasil um Estado laico.

A Assessoria Especial e o então Assessor da Presidência, Dr. Antônio Vinicius Amaro da Silveira, manifestaram-se pelo indeferimento do pedido, o que foi acolhido pelo anterior Presidente deste Tribunal de Justiça, Desembargador Leo Lima (fl. 15).

Sobreveio, então, pedido de reconsideração, que foi encaminhado ao egrégio Conselho da Magistratura, na forma do artigo 8º, inciso IX, alínea “b”, de seu Regimento Interno, sendo-me distribuído o expediente.

Vieram-me conclusos.

É o relatório.

V O T O

Des. CLÁUDIO BALDINO MACIEL (RELATOR)

Eminentes colegas.

Embora sejam ouvidas algumas vozes apontando para a irrelevância do tema ora tratado quando cotejado com as graves questões enfrentadas pelo Poder Judiciário brasileiro, não hesito em afirmar, em primeiro lugar, que o tema deste expediente é muito relevante, especialmente porque diz respeito a matéria regida pela Constituição Federal e porque se trata de refletir a respeito da relação entre Estado e Igreja em um país republicano, democrático e laico.

Aliás, a demonstrar a relevância do tema para as sociedades mais avançadas e com consolidado estágio democrático, basta referir recentes decisões da Corte Constitucional da Alemanha, da Suprema Corte Americana e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, do que se tratará adiante.

A influência da Igreja sobre o Estado, especialmente na Idade Média, com todos os abusos que daí advieram (Cruzadas, Santa Inquisição, etc.) foi uma das causas que acabaram levando, no âmbito do mundo ocidental, à laicidade estatal.

Ainda há, contudo, Estados teocráticos. O Irã islâmico, antiga Pérsia secular, é um exemplo sugestivo de como nesse modelo de organização política uma única doutrina religiosa assume tão decisiva importância para a integral conformação do país e mesmo para o destino de seu povo. E disso deriva, quase sempre, intolerância extrema com crenças religiosas distintas da religião oficial. Recente notícia na imprensa mundial divulgou o fato de que um cidadão iraniano chamado Youssef Nadarkhani, por causa de sua conversão ao cristianismo, resultou condenado à morte uma vez que não teria aceitado a proposta estatal de reconversão ao Islã.

A nação brasileira, a exemplo do que ocorre no mundo ocidental em geral desde o final do Império e através de todas as Constituições republicanas, afirmou tratar-se o Brasil de um Estado laico.

O artigo 19 da Constituição Federal de 1988 veda expressamente à União, Estados e Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Por outro lado, no rol dos direitos fundamentais, a Constituição assegura aos cidadãos a liberdade religiosa, a liberdade de crença e de culto, além da igualdade, independentemente de suas convicções religiosas.

Logo, quis o Brasil que o Estado seja laico, vale dizer, um Estado inteiramente separado da Igreja e que, além de não adotar, se mostre indiferente e neutro com relação a qualquer religião professada por parte de seu povo, embora deva não intromissão e respeito a todas.

A laicidade opera em duas direções, complementares e importantes: por um lado, o Estado não se pode imiscuir em temas religiosos, ou seja, não pode embaraçar, na dicção constitucional, o funcionamento de igrejas e cultos religiosos ou mesmo manifestação de fé ou crença dos cidadãos, o que significa salvaguarda eficaz para a prática das diversas confissões religiosas; por outro lado, no entanto, a laicidade protege o Estado, como entidade neutra nesta área, da influência religiosa, não podendo qualquer doutrina ou crença religiosa, mesmo majoritária, imiscuir-se no âmbito do Estado, da política e da res pública.

Em outras palavras, o Estado laico protege a liberdade religiosa de qualquer cidadão ou entidade, em igualdade de condições, e não permite a influência religiosa na coisa pública.

Na França, cuja república ainda está contaminada por um certo grau de jacobinismo que remonta à Revolução de 1789 (“o mundo só será feliz quando o último rei for enforcado com as tripas do último padre”, teriam dito Voltaire ou Jean Meslier, o que bem reflete o clima da época), no ano de 1994 foi editada lei que proíbe que alunos de escolas públicas portem símbolos religiosos ostensivos. O objetivo, conquanto genérico, na verdade foi a proibição da burka para mulheres de determinado credo religioso, porque tal medida violaria a liberdade religiosa dos demais cidadãos. Ou seja, na França se proíbe determinadas manifestações individuais da religiosidade.

No Brasil, em meu modo de ver, não seria juridicamente admissível tal tipo de restrição, já que atinge o âmbito individual da experiência religiosa, explicitamente protegido pela Carta Maior.

Ao contrário, em nosso país se salvaguarda exatamente a crença e a prática religiosa individual ou coletiva ante a ação do Estado, que não pode nelas interferir. Exatamente por tal motivo se exige a neutralidade estatal em matéria religiosa, ou seja, deve o Estado adotar postura que se afaste de qualquer atividade, prática religiosa ou exposição de símbolos religiosos em instituições públicas como forma de garantir sua neutralidade em face de valores religiosos ou mesmo da falta de tais valores.

À margem da Constituição Federal, a prática, contudo, não tem sido exatamente esta.

Por exemplo, hoje é fácil constatar a existência de uma política de concessão de rádios e televisões que, além de criar outros graves problemas (criou uma bancada da comunicação social com uma quantidade alarmante de parlamentares titulares de concessões, circunstância que viola frontalmente a CF), proporcionou a criação e a manutenção de uma bancada evangélica no Congresso Nacional, hoje com número e força suficiente para barrar a tramitação de qualquer projeto de lei que contrarie elementos de sua doutrina religiosa.

Nada de errado haveria em tal fato se o fenômeno não estivesse apoiado, para se criar e manter, em uma extensa rede de rádios e televisões que representam serviço público concedido, cujos critérios de concessão violam, para falar o menos, a isonomia com que tal tema deveria ser tratado no seio de uma nação multicultural, multirracial e multirreligiosa como a nossa.

Também assim ocorre no âmbito do Poder Judiciário e outros espaços públicos de prédios estatais, quando se constata a presença de símbolos religiosos como, por exemplo, o crucifixo.

A questão é, portanto, mais complexa e profunda do que possa parecer a um primeiro olhar.

Não se trata, evidentemente, de defender postura ateísta ou refratária à religiosidade. No dizer de Daniel Sarmento1:

O ateísmo, na sua negativa de existência de Deus, é também uma crença religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de qualquer outra cosmovisão. Pelo contrário, a laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes concepções religiosas presentes na sociedade, sendo-lhe vedado tomar partido em questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer crença.”2

Em Portugal, um dos maiores especialistas da matéria assim se manifesta a respeito:

A concessão estadual de uma posição de vantagem a instituições, símbolos ou ritos de uma determinada confissão religiosa é suscetível de ser interpretada, pelos não aderentes, como uma forma de pressão no sentido da conformidade com a confissão religiosa favorecida e uma mensagem de desvalorização das restantes crenças. Por outras palavras, ela é inerentemente coerciva.” 3

Daí vem que mesmo nos Estados Unidos da América, país com forte tradição religiosa representada pela própria expressão “in God we trust”, lema norte americano estampado em notas de dinheiro e moedas daquele país, a Suprema Corte, no caso Engel x Vitale, ainda no ano de 1962, ressaltou que:

Quando o poder, prestígio ou apoio financeiro do Estado é posto a serviço de uma particular crença religiosa, é clara a pressão coercitiva indireta sobre as minorias religiosas para que se conformem a religião prevalecente oficialmente aprovada.”4

Em outras palavras, decidiu a Suprema Corte americana que a preferência estatal por uma determinada crença com a ostentação de visíveis símbolos religiosos em espaço público institucional representa uma indevida adesão oficial a uma corrente religiosa e uma correspondente coerção relativa às demais correntes ou àqueles que não professam crença alguma.

Na jurisdição constitucional alemã, da mesma forma, está assente a inconstitucionalidade da presença de crucifixos, pelos mesmos motivos, em salas de aula do ensino fundamental.

Assim decidiu o Tribunal Constitucional alemão5:

O art. 4, I, da Lei Fundamental, deixa a critério do indivíduo decidir quais símbolos religiosos serão por ele reconhecidos e adorados e quais serão por ele rejeitados. Em verdade, não tem ele direito, em uma sociedade que dá espaço a diferentes convicções religiosas, a ser poupado de manifestações religiosas, atos litúrgicos e símbolos religiosos que lhe são estranhos. Deve-se diferenciar disso, porém, uma situação criada pelo Estado, na qual o indivíduo é submetido, sem liberdade de escolha, à influência de uma determinada crença, aos atos nos quais ela se manifesta, e aos símbolos pelo meio dos quais ela se apresenta… O Estado, no qual convivem seguidores de convicções religiosas e ideológicas diferentes ou mesmo opostas, apenas pode assegurar suas coexistências pacíficas quando ele se mantém neutro em matéria religiosa.”

A Suprema Corte americana, no caso County of Allengheny x ACLU6, considerou inconstitucional, por violação da anti-establishment cause, a manutenção de um presépio natalino na escadaria de um tribunal, já que o mesmo expressava mensagem religiosa incompatível com a primeira emenda que proíbe o Estado de transmitir ou tentar transmitir uma mensagem de que uma religião ou uma crença religiosa em particular seja favorecida ou preterida.

Foi certamente com base em compreensão similar que o então Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2009, determinou a retirada do crucifixo da sala do Órgão Especial e desativou a capela confessional existente nas dependências do tribunal, promovendo a criação de um local ecumênico no prédio. O Presidente em questão tem origem judaica e, talvez por tal circunstância, tenha melhor compreendido a discriminação que possa significar, para quem professa outras crenças, o símbolo máximo de uma única determinada religião em um prédio público.

Ora, a laicidade deve ser vista, portanto, não como um princípio que se oponha à liberdade religiosa. Ao contrário, a laicidade é a garantia, pelo Estado, da liberdade religiosa de todos os cidadãos, sem preferência por uma ou outra corrente de fé. Trata-se da garantia da liberdade religiosa de todos, inclusive dos não crentes, o que responde ao caro e democrático princípio constitucional da isonomia, que deve inspirar e dirigir todos os atos estatais de acordo com um imperativo constitucional que não se pode desconhecer ou descumprir.

Há quem refira, como defesa possível de sua tese, o caráter não-religioso do crucifixo. Sem razão, contudo. É evidente que o símbolo do crucifixo remete imediatamente ao Cristianismo, consistindo em sua imagem mais evidente.

A Corte Constitucional alemã, refutando o argumento de que o crucifixo é mero enfeito que deveria ser tolerado em ambiente estatal por força da tradição, dispôs:

A cruz representa, como desde sempre, um símbolo religioso específico do Cristianismo. Ela é exatamente seu símbolo por excelência. Para os fiéis cristãos, a cruz é, por isso, de modos diversos, objeto de reverência e de devoção. A decoração de uma construção ou de uma sala com uma cruz é entendida até hoje como alta confissão do proprietário para com a fé cristã. Para os não cristãos ou ateus, a cruz se torna, justamente em razão de seu significado, que o Cristianismo lhe deu e que teve durante a história, a expressão simbólica de determinadas convicções religiosas e o símbolo de sua propagação missionária. Seria uma profanação da cruz, contrária ao auto-entendimento do Cristianismo e das igrejas cristãs, se se quisesse nela enxergar, como as decisões impugnadas, somente uma expressão da tradição ocidental ou como símbolo de culto sem específica referência religiosa.”7

Vê-se, assim, que a questão ora analisada não é prosaica ou simples, já que não se trata de julgar forma de decoração ou preferência estética em ambientes de prédios do Poder Judiciário, senão de dispor sobre a importante forma de relação entre Estado e Religião num país constituído como república democrática e laica.

Parece-me evidente, no entanto, que embora sejam espaços institucionais os gabinetes dos magistrados podem retratar a sua preferência pessoal, especialmente porque não se apresentam como áreas de circulação do público em geral. Não raramente se vê, em tais gabinetes, vistosos símbolos de clubes de futebol, bandeiras e distintivos, o que pode, a critério de alguns, ser algo de mau gosto, mas se revela situação juridicamente sustentável já que se está tratando de um ambiente bem mais privado.

O mesmo se diga com relação a símbolos religiosos ou de outra natureza.

Nada impede que um magistrado, no interior de seu gabinete de trabalho, faça afixar na parede um símbolo religioso ou uma fotografia de Che Guevara.

No entanto, à luz da Constituição, na sala de sessões de um tribunal, na sala de audiências de um foro, nos corredores de um prédio do Judiciário mostra-se ainda mais indevida a presença de um crucifixo (ou uma estrela de Davi do judaísmo, ou a Lua Crescente e Estrela do Islamismo) do que uma grande bandeira de um clube de futebol.

Isto porque, ao passo em que a presença da bandeira de um clube de futebol na sala de sessões de um tribunal não fere o princípio da laicidade do Estado (ao contrário da presença da presença do crucifixo, que fere tal princípio), a presença de qualquer deles – bandeira de clube ou crucifixo - em espaços públicos do Judiciário fere o elementar princípio constitucional da impessoalidade no exercício da administração pública. Ou seja, a presença de símbolos religiosos em tais locais viola, além do princípio da laicidade do Estado e da liberdade religiosa, também o princípio da impessoalidade que rege a administração pública.

Os símbolos oficiais da nação brasileira estão previstos na Constituição Federal, sendo eles a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais.8 São símbolos do Estado do Rio Grande do Sul a bandeira rio-grandense, o hino farroupilha e as armas tradicionais9. Tais são os símbolos, portanto, que podem ser ostentados em ambientes formais do Poder Judiciário, abertos ao público, sem violação do princípio constitucional da impessoalidade.

Estabelecimentos estatais são locais públicos pertencentes ao Estado. Assim, devem ser administrados em consonância com os princípios, implícitos e explícitos, que regem a Administração Pública, dentre eles o da impessoalidade10, o que justifica plenamente, em meu sentir, a procedência do pleito de que ora estamos a tratar.

O princípio da impessoalidade está imbricado com o princípio da isonomia, visto que os atos dos administradores devem servir a todos, indistintamente, dada a igualdade estabelecida pela Carta Maior entre os cidadãos, inexistindo a possibilidade jurídica de o Estado, por seus administradores, fazer distinções filosóficas, políticas ou religiosas em sua atuação política e administrativa.

Celso Antônio bandeira de Mello assim leciona a respeito do ponto:

O princípio da impessoalidade traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas o u ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.”11

A outra vertente do princípio referido é a de que a administração pública tem por norte o interesse público, impondo-se aos administradores que atuem em nome do Estado, sendo-lhes vedado, por tal razão, agir por interesse pessoal, em nome próprio, por crença ou simpatia religiosa, elegendo um dentre tantos símbolos possíveis (ou a ausência destes) para ostentar em prédios sob sua administração.

Para José Afonso da Silva, que representa doutrina pacífica sobre o tema:

Isto ocorre para que as realizações administrativo-governamentais não sejam propriamente do funcionário ou da autoridade, mas exclusivamente da entidade pública que a efetiva.”12

Ora, o Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de sessões ou audiências, corredores e saguões de prédios do Poder Judiciário não podem ostentar quaisquer símbolos religiosos, já que qualquer um deles representa nada mais do que a crença de uma parcela da sociedade, circunstância que demonstra preferência ou simpatia pessoal incompatível com os princípios da impessoalidade e da isonomia que devem nortear a administração pública.

Causaria a mesma repulsa à idéia de laicidade estatal, por exemplo, a ostentação, em um altar de Igreja católica, do brasão do Estado do Rio Grande do Sul. Em tal hipótese, contudo, ao menos os princípios constitucionais estariam preservados, já que a administração da Igreja, por não se constituir em administração pública, a eles não está jungida.

Mas não somente isso.

Também o princípio da legalidade impõe o acolhimento do pleito vertido neste expediente administrativo.

Para o cidadão brasileiro, em geral, vige a regra constitucional de que é permitido fazer tudo aquilo que não estiver vedado por lei.

Já para a administração pública, no entanto, o princípio é outro: só é permitido fazer o que está previsto em lei.

Ao analisar o caso em questão vê-se que não há lei que preveja ou disponha sobre a presença de símbolos religiosos em espaços do Judiciário abertos ao público. Mais do que isso, a Constituição implicitamente os veda.

Veda-os não somente como decorrência lógica do princípio da laicidade estatal, mas também em face da aplicação dos diversos outros princípios constitucionais já referidos (impessoalidade, isonomia, legalidade) e do direito fundamental à liberdade religiosa de todos os jurisdicionados que possam se fazer presentes naqueles locais estatais.

Por tais motivos, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de seu Órgão Especial13, deliberou pela invalidade de lei do Município de Assis que determinara a inserção nos impressos oficiais da municipalidade do versículo bíblico “Feliz a Nação cujo Deus é o Senhor”. Entendeu o tribunal que:

Como deve o Estado manter-se absolutamente neutro em relação às diversas igrejas, não podendo beneficiá-las nem prejudicá-las, não tem cabimento a inserção do versículo bíblico nos impressos e documentos oficiais do Município, pois isso evidencia simpatia em relação a determinadas orientações religiosas, o que é expressamente vedado pela Lei Maior.”

É verdade que, conquanto laico o Estado brasileiro, paradoxalmente o preâmbulo da Constituição Federal invoca a menção a Deus, o que tem sido um argumento utilizado para justificar certa presença religiosa em instituições públicas.

É atualmente pacífico na jurisprudência constitucional, contudo, o entendimento de que o preâmbulo da Constituição não possui força normativa. O Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento da ADI nº. 2076-5, referiu ironicamente em seu voto:

Esta locução ‘sob a proteção de Deus’ não é norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigações para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato jactansiosa e pretensiosa, talvez, de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do país”.14

Por fim, poder-se-ia argumentar com a tradição do uso de crucifixos em espaços públicos no Brasil, não havendo dúvidas a respeito de que tradicionalmente são utilizados tais símbolos religiosos.

No entanto, absolutamente não é papel do Judiciário legitimar acriticamente qualquer tradição social, especialmente se excludente ou inconstitucional. Já não se discute, na atualidade, o legítimo papel do Direito que se opõe à idéia de meramente afirmar práticas hegemônicas da maioria social, mesmo que contrárias ao texto constitucional. Ademais, o princípio democrático contramajoritário justificaria plenamente a defesa de eventuais minorias quanto ao abuso das práticas religiosas da maioria, especialmente as de raiz inconstitucional.

O nepotismo, por exemplo, foi uma prática tradicional no Brasil. Tradicionalmente houve uma certa promiscuidade entre o público e o privado. Não obstante, está sendo superado o nepotismo porque sobre tal “tradição” o Judiciário, devidamente provocado, teve uma abordagem crítica que considerou tal prática inconstitucional exatamente por violar, de igual modo, o princípio da impessoalidade na administração pública.

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, de acordo com o artigo 3º da Constituição de 1988, dentre outros, promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O cidadão judeu, o muçulmano, o ateu, ou seja, o não cristão, é tão brasileiro e detentor de direitos quanto os cristãos. Tem ele o mesmo direito constitucionalmente assegurado de não se sentir discriminado pela ostentação, em local estatal e por determinação do administrador público, de expressivo símbolo de uma outra religião, ainda que majoritária, que não é a sua.

Por motivos semelhantes, no dia 3 de novembro de 2009 a Corte Européia de Direitos Humanos condenou a Itália (Lautsi x Italy) ao pagamento de 5.000 mil euros, a título de danos morais, a uma cidadã que se sentia ofendida diante da manutenção de crucifixos no âmbito das escolas públicas, o que revela, uma vez mais, a inquestionável centralidade e a indiscutível relevância constitucional do tema pertinente aos limites conceituais da cláusula da separação entre Estado e Igreja.

A Corte Européia fez prevalecer os valores centrais da liberdade e da igual dignidade das crenças, e das descrenças, repudiando, assim, qualquer comportamento do Estado que seja capaz de identificá-lo com determinado pensamento religioso em detrimento de todos os demais. Além disso, o Tribunal Europeu dispôs que, muito embora o crucifixo seja mesmo revestido de múltiplos significados, a significação religiosa é aquela que lhe é “predominante” e que lhe confere sentido. Finalmente, o tribunal assegurou a relevante premissa de que a liberdade de crença (a compreender a liberdade de crer ou não crer) impõe ao Estado a obrigação constitucional de

se abster de qualquer imposição, ainda que indireta, de determinado pensamento religioso, especialmente naqueles locais nos quais as pessoas se fazem dependentes dos poderes públicos”.

Assim sendo, conquanto o CNJ já tenha decidido pontualmente que a presença de símbolos religiosos em ambientes judiciários não revela inadequação censurável, estou certo, data venia, de que se resguardar o espaço público do Judiciário para o uso somente de símbolos oficiais do Estado é o único caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de um estado laico, devendo ser vedada a manutenção de crucifixos e outros símbolos religiosos em ambientes públicos dos prédios do Poder Judiciário no Estado do Rio Grande do Sul.

Ademais, especialmente na época atual em que tantos temas de interesse religioso estão sendo trazidos à decisão judicial (aborto de feto anencéfalo e uniões homoafetivas, por exemplo) e sobre os quais as Igrejas manifestam e lutam publicamente pela defesa de determinada solução com base em sua doutrina religiosa, o julgamento feito em uma sala de tribunal sob um expressivo símbolo de uma Igreja e de sua doutrina não me parece a melhor forma de se mostrar o Estado-juiz eqüidistante dos valores em conflito.

Creio, por fim, que mesmo para os que professam a religião cristã esse é o melhor caminho.

Antecipando-se a este debate, há aproximadamente dois mil anos, Jesus Cristo, segundo o evangelho de Matheus, propôs a correta solução do problema referente à separação entre Igreja e Estado. Indagado a respeito da licitude do pagamento de tributos, com Sua imensa sabedoria respondeu:

Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” 15

A administração dos prédios e espaços do Poder Judiciário, tal como a obrigação de pagar tributos, é assunto dado a “César”.

Voto, portanto, no sentido de acolher o pleito de retirada de crucifixos e outros símbolos religiosos eventualmente existentes nos espaços destinados ao público nos prédios do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul.

É o voto.

1 Revista Eletrônica PRPE, maio de 2007

2 JJ Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol I, Coimbra, Ed. Coimbra, 2007, p.613, apud Sarmento, op cit.

3 Jónatas Eduardo Mendes Machado. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 348-349 (apud Daniel Sarmento)

4 apud Daniel Sarmento, op. cit

5 BVerfGE 93, I (1991) – apud Daniel Sarmento, op cit

6 US573 (1989), apud Sarmento, op cit

7 BVerfGE, 91, I (1995), idem

8 Art. 13, par. 1º, da CF88

9 Art. 6º da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul

10 Art. 37 da Constituição Federal de 1988

11 Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 7 ed., São Paulo, Malheiros Editora, p. 68

12 José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª. Edição. Malheiros editora, 1998, p. 645

13 ADI 113349-01, julgamento de maio de 2005

14 Apud Sarmento, idem

15 Matheus, 22:21

Fonte: Site Judiciário e Sociedade. Endereço:http://magrs.net/?p=24329

sexta-feira, 9 de março de 2012

A empresa concessionária de transporte público não responde objetivamente pelos danos morais e materiais decorrentes de assalto a passageiro no interior do coletivo. O entendimento é da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar procedente reclamação da Viação Vila Rica Ltda. contra decisão da Quarta Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado do Rio de Janeiro (RJ).
A decisão do juizado especial estabeleceu que a empresa tem o dever de transportar os passageiros até o destino final, ausentes quaisquer perturbações no que tange ao quesito segurança – ou seja, ilesos. “Não vislumbro a ocorrência do chamado fortuito externo, tampouco a exclusão da responsabilidade tendo como alicerce o dever exclusivo de segurança do Estado”, afirmou a decisão do juizado especial.
Na reclamação, a concessionária alegou que a decisão diverge da orientação pacificada pela Segunda Seção do STJ, consolidada no sentido de que “o fato de terceiro que não exonera de responsabilidade o transportador é aquele que, com o transporte, guarda conexidade e se insere nos riscos próprios do deslocamento, o que não ocorre quando intervenha fato inteiramente estranho, como ocorre tratando-se de um assalto”.
Ao analisar a questão, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que a Segunda Seção firmou, há tempos, entendimento no sentido de que, não obstante a habitualidade da ocorrência de assaltos em determinadas linhas, é de ser afastada a responsabilidade da empresa transportadora por se tratar de fato inteiramente estranho à atividade de transporte (fortuito externo), acobertado pelo caráter da inevitabilidade.
Assim, o ministro acolheu a reclamação da Viação Vila Rica Ltda. para reformar a decisão do juizado especial e julgar improcedente o pedido do passageiro.

Fonte: STJ

quinta-feira, 8 de março de 2012

por George Marmelstein Lima

 

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“Estude com quem faz jurisprudência” – faixa publicitária exposta na fachada do IBD – Instituto Brasiliense de Direito Público

Tive oportunidade de assistir a uma aula do Lênio Streck aqui em Coimbra. Na ocasião, ele afirmou, num tom crítico, que a doutrina jurídica, no Brasil, já não mais doutrinava. Disse que os juristas brasileiros, de um modo geral, são meros reprodutores da jurisprudência. A doutrina deixou de ter qualquer papel relevante na criação do direito para se tornar uma mera sistematizadora do que os tribunais julgam.

Embora toda generalização tenha um pouco de injustiça, devo admitir que tendo a concordar com ele. Realmente, são poucos os autênticos doutrinadores jurídicos no Brasil (e não me incluo entre eles, diga-se de passagem). É bem diferente do que ocorre aqui em Portugal, pelo menos em Coimbra. Aqui, em regra, os professores vivem para a academia. Escrevem obras de peso capazes de alterar o rumo do pensamento jurídico. O Professor Castanheira Neves, por exemplo, que se dedica integralmente à Faculdade de Direito de Coimbra, foi um dos principais responsáveis pelo reconhecimento da inconstitucionalidade de um instituto conhecido como “assentos”, que é semelhante a nossa súmula vinculante. Seu estudo de centenas de páginas sobre o tema foi a base teórica do fundamento utilizado pelos julgadores.

No Brasil, pelo contrário, são cada vez mais raros os professores que vivem unicamente do ensino e da pesquisa. Geralmente, os juristas são, além de professores, profissionais atuantes: advogados, procuradores, juízes, promotores etc. A academia é um bico. Alguns professores ensinam por amor e não pelo dinheiro ou pelo status do cargo, mas nem todos são assim. As obras produzidas, com muita freqüência, escondem interesses econômicos, já que podem ter sido estimuladas por perspectivas de ganhos profissionais. As obras mais vendidas não teorizam nada, mas apenas reproduzem as principais decisões dos tribunais. O mercado editorial não quer saber de livros teóricos: o público exige “esquemas”, “macetes” e “resumos”. Eu próprio, antes de publicar o “Curso de Direitos Fundamentais”, já escrevi pelo menos quatro ou cinco “livros” mais teóricos que foram devidamente recusados pelas editoras por não ter “mercado”.

Então, no final, não sobra espaço para a produção de uma doutrina crítica e influente. A “doutrina”, regra geral, é dócil como um carneirinho. A faixa exposta no IBD, infelizmente, faz todo o sentido: hoje, não adianta mais estudar com quem teoriza, pois não há mais teoria; os alunos querem estudar com quem faz jurisprudência! A lei do mercado é perversa com os “amantes do saber”. E os “sabichões” ainda se aproveitam disso para lucrar.

Como juiz federal, eu deveria gostar desse quadro, já que me beneficia. Ser juiz e “doutrinador” aqui no Brasil é uma fórmula de sucesso, algo não muito comum em outros lugares do mundo. Mas isso não me agrada. E não me agrada por um motivo básico: qualquer teoria só evolui com a crítica; sem crítica, não há evolução do pensamento. No modelo atual brasileiro, em que quase todos os juristas estão amarrados por interesses profissionais, não há clima para uma crítica mais ácida. Ninguém gosta de se indispor com quem está no poder. São poucos os advogados que têm coragem de identificar abertamente um erro cometido por algum tribunal e publicar um artigo consistente, alicerçado em bases sólidas, demonstrando que os juízes se equivocaram. As críticas são veladas, tímidas e quase sempre motivadas por razões econômicas. Hoje, quem mais critica as decisões do STF são os jornalistas e o público em geral e não os juristas. E os juristas ainda vêm com esta: esses leigos não sabem do que estão falando… Sabem sim, e têm coragem de dizer abertamente.

Mas essa omissão da doutrina jurídica no Brasil talvez também tenha seu lado positivo. Quanto menos poder tiverem os juristas, mais espaço sobra para o desenvolvimento da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Nas questões mais polêmicas, como as pesquisas com células-tronco, o aborto de fetos anencéfalos, as uniões homossexuais etc., quem está sendo ouvido são os membros da sociedade civil e não os juristas. Isso torna o debate jurídico mais plural e mais aberto, o que é benéfico. Nesse aspecto, estamos no bom caminho. O “bacharelismo” é um mal em qualquer lugar do mundo.

De todo modo, é importante valorizar uma doutrina crítica que tenha coragem de afrontar abertamente as decisões judiciais e também os seus colegas de academia. Talvez seja por isso que gosto dos textos do Virgílio Afonso da Silva. Ele tem coragem de ser indelicado com os seus colegas da academia, identificando seus erros e imprecisões de uma forma quase grosseira. Logicamente, não é bem visto pelos seus pares. Mas deveria ser. Na academia, isso deveria ser considerado como uma virtude.

Alguém poderia me chamar de hipócrita, já que também não costumo criticar os colegas juízes nem os colegas professores. Mas como disse: não sou doutrinador, nem pretendo ser, nem posso ser. Estou amarrado pelas limitações impostas pela magistratura, que, para quem não sabe, são muitas e cada vez maiores. Como costumam dizer os militares: “quem mija pra cima acaba se dando mal”…

E aí, o que vocês acham? Existe doutrina jurídica no Brasil? De qualidade?

Publicado originalmente no blog Direitos Fundamentais, endereço:http://direitosfundamentais.net/2009/06/11/existe-doutrina-juridica-no-brasil/

domingo, 4 de março de 2012

Por Elio Gaspari

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Em janeiro, o procurador Ophir Cavalcante, licenciado desde 1998, custava à Viúva R$ 30.062,07 mensais

É dura a vida do presidente da Ordem dos Advogados, Ophir Cavalcante. No último ano ele condenou o tamanho da fila dos precatórios de São Paulo, a farra dos passaportes diplomáticos, as fraudes nos exames da Ordem, a atuação de advogados estrangeiros em Pindorama, o enriquecimento de Antonio Palocci e a blindagem dos "ficha suja". Defendeu a autonomia salarial do Judiciário e os poderes do Conselho Nacional de Justiça.

Como se sabe, Ophir Cavalcante é sócio de um escritório de advocacia em Belém e procurador do governo do Pará, licenciado desde 1998, quando se tornou vice-presidente da seccional da Ordem. Até aí, tudo bem, pois Raymundo Faoro era procurador do Estado do Rio, apesar de não lhe passar pela cabeça ficar 13 anos com um pé na folha da Viúva e outro na nobiliarquia da Ordem.

Em agosto do ano passado, quando o Tribunal Regional Federal permitiu que Senado pagasse salários acima do teto constitucional de R$ 26.723, Cavalcante disse o seguinte: "O correto para o gestor público é que efetue o corte pelo teto e que as pessoas que se sentirem prejudicadas procurem o Judiciário, e não o contrário".

Em tese, os vencimentos dos procuradores do Pará deveriam ficar abaixo de um teto de R$ 24.117. Seu "Comprovante de Pagamento" de janeiro passado informa que teve um salário bruto de R$ 29.800,59. O documento retrata as fantasias salariais onde a Viúva finge que paga pouco e os doutores fingem que recebem menos do que merecem. Isso não ocorre só com ele, nem é exclusividade do Ministério Público do Pará.

O salário-base do doutor é de R$ 8.230,57. Para os cavalgados é isso, e acabou-se. No caso de Cavalcante, somam-se sete penduricalhos. Há duas gratificações, uma de R$ 6.584 por escolaridade, outra de R$ 7.095 por "tempo de serviço" (na repartição, ficou três anos, mas isso não importa); R$ 4.115 por "auxílio pelo exercício em unidade diferenciada" (a procuradoria fica em Belém, mas ele está lotado na unidade setorial de Brasília).

Esse contracheque levou uma mordida de R$ 5.196 do Imposto de Renda. Se o doutor trabalhasse numa empresa privada, com salário bruto de 29.800,59, tivesse dois dependentes e pagasse, como ele, R$ 2.141 na previdência privada, tomaria uma mordida de R$ 6.760.

Finalmente, há R$ 314 de auxílio-alimentação, o que dá R$ 15,70 por almoço. A OAB precisa protestar: o Ministério Público paraense passa fome.

Fonte: Jornal Folha de São Paulo – edição de 04/03/2012.